quinta-feira, novembro 15

Mais um dia na metrópole do terceiro mundo, evito o primeiro tempo do trabalho para fazer um teste para outro. Uma hora tenho que conseguir escapar daquele buraco infeliz no cortiço da casa esquartejada, meio quarto separado por uma parede de madeira fina. Agora o novo velho vizinho que entrou ronca a noite toda com a tevê ligada. Eu mereço. O paranóico da frente continua ouvindo alto a rádio mal-sintonizada, e o arrependido seu Luis Carlos sofre das traquéias e do fígado e da falta de sono. E o trabalho não é tão mal, mas devora o dia inteiro, e paga aquela miséria parca só pra sobreviver. Samba e carnaval, quer enganar quem? Pior que não dá pra ajeitar um teto decente agora, e se for aprovado em outro trampo, vai ser uma viagem por dia, como vão ficar os frilas, mas sem moradia (e sem computador) não dá pra frilar. Não tem jeito, paciência, as coisas estão andando, tudo tem uma razão, deve ser provação. Isso sem falar na arte, que a essa altura do campeonato está acabrunhada em algum canto escuro esperando por um patrono mais generoso que a pátria amada.

Parece que foi razoavelmente bem no teste, vai saber. É esperar, e trabalhar. Ampliar as possibilidades aos poucos. Está tudo indo bem. Hoje às 18h saio do trabalho e vejo uma outra caverna, talvez possa trocar. Depois do almoço, fui para o trabalho em si. A livre iniciativa ambulante percorrendo as brechas dos grilhões da sociedade. Aniversário daquela gostosinha da mesa do lado, bolo depois das 18h, chego para ver a tal caverna na seqüência: acabei de alugar, diz a dona. Se tivesse chegado dez minutos antes, trocava de quarto. A menina ainda está aí. Mas entre para ver (o que você perdeu, mamão): descendo pela escada de madeira e adentrando até o fim do corredor, um singelo cômodo com paredes de verdade, longe da rua, em silêncio beatífico. E essas duas sapatas mirins revoltadas com a família abraçaram. É o império do loserismo, fantasma onipresente na imensidão cronológica da minha vida.

Mas a missão continua: metrô debaixo do trânsito caótico, o mano espera com o livro que havia pego na livraria especialmente para concluir o texto pra tal conferência internacional. Étrangers à nous-mêmes, traduzido para o inglês como Strangers to Ourselves. Difícil, e ainda dizem que trabalho braçal que é pesado. Mas como
braçal paga mais mal ainda, deixa pra lá. Capa dura preta, só o isbn grafado em vermelho brilhante na contracapa. Conversas satânicas pela superfície, pela avenida, em meio aos vermes do concreto e das latas motorizadas, chegando até a destruição da civilização. A natureza do homem é a sua cultura: torpe engano, idólatra. Preso nos labirintos da sua criação, cegou-se para si próprio.

Pego o metrô de volta para seu buraco de rato, o vizinho louco sentado no sofá pergunta se estou namorando a lavadeira que ele pegava, uma ex-prostituta que agora só mendingo vai querer comer. Cara, só vi ela uma vez, quando me passou os preços, e eu desencanei. Diz-se aposentado, conta a história do hotel que morou antes, de como bateu em um moleque que depois ameaçou-o armado. O bronquítico confeiteiro cearense obeso senta-se um pouco também. Chega da rua o velho da outra metade do caverna, falando animado de futebol e cumprimentando. Depois do banho, tento se concentrar, mas o zumbido agudo da televisão é realmente desesperador. Roncos. Levanto e bato à porta do camarada, que acorda de supetão, e desliga a maldita caixa da idiotia.