sábado, outubro 17

No Star, após meses de andanças incansáveis por passagens obscuras do ciberespaço, alcança seu destino e volta ao inferno para descansar em paz. A estrela agora brilha na terra, a profecia desponta no horizonte, e a conquista do mundo está assegurada. O fim é o começo. Todo o vigor da vida se reúne, sublime. E segue o ritmo da eternidade.

sábado, novembro 8

Diálogo entre No Star e Satã

Ao chegar no inferno, após cruzar o Estige e ser conduzido ao segundo giro do sétimo círculo, No Star ludibria o demônio menor que o torturava e depara-se cara a cara com o Senhor das Trevas, o grande anjo caído, Satã. Segue-se o diálogo:

--- Pensa que pode fugir dos meus domínios? Hahahahahahaha.
--- Longe de mim, ó todo-poderoso. Ansiava sim ter a honra de conversar com o senhor.
--- E por que motivo deveria ouvi-lo?
--- Sabe que na Terra seu nome já não impõe respeito e nem assusta ninguém. Pelo contrário, é motivo de zombaria e riso mesmo entre as crianças pequenas, apesar de não haver onde seus atos não sejam encontrados e do número de almas sob seu poder ser cada vez maior.
--- Prossiga.
--- Proponho-lhe deixar-me voltar à vida para que possa servir-lhe para restituir a glória, imponência e temeridade que outrora seu nome inspirava.
--- E de que forma?
--- Por meio da linguagem dos homens e da escrita, principalmente.
--- Não tenho o poder para restaurar a vida de seu corpo.
--- Pois terei então uma existência apenas entre os sinais de códigos binários que os humanos usam para se comunicar. Meramente em palavras.
--- Seu corpo então volta ao pó. Está feito.

quarta-feira, dezembro 12

Suicídio no fim da tarde chuvosa. Apodrece decomposto pelos vermes do concreto. DESCANSE EM PAZ

Early rainy evening suicide. Rottens decomposed by the concreteworms.
REST IN PEACE

terça-feira, dezembro 11

Mudei-me de caverna: agora estou numa com vista para a cidade, com pia & fogão. Hoje comprei um filtro de barro (o trabalho enobrece o homem) e um butijão de gás. Já conheço, ou pelo menos sei quem são os habitantes dos buracos adjacentes: Três Adrianos, Luis Carlos, e Isabel, uma negra gorda que disse costumava fazer a ponte aérea São Paulo-Salvador a trabalho às expensas de um antigo rico patrão. Parece que faz capoeira e freqüenta centro espírita. Limpa a casa (a parte que nos cabe dela) nas poucas horas vagas, o que é excelente. O Adriano vizinho da sacada chegou na pensão para ficar por seis meses após o divórcio e está há treze anos. Tem discos do Roberto Carlos e dos Bee-Gees, um filho e fala com o cigarro na boca. Outro Adriano é o velho gordinho que ronca, ex-vizinho direto. Sempre o encontro sentado à mesa da lanchonete ao lado com uma lata de cerveja, mexendo no celular, e camisa do José Serra. Sua referência é a televisão (dorme com ela). O terceiro Adriano senta no sofá da frente para fumar, faz as mesmas perguntas diversas vezes e não retém as conversas direito. Ouve rádio alto e muitas vezes fora do ar. Luis Carlos é o confeiteiro cearense. Seu quarto tem paredes finas de madeira que o fazem ouvir tudo que passa pelo corredor. minha caverna anterior está agora desocupada, os habitantes desta que estou, um senhor quase mudo e sua filha, mudaram-se. Enfim. Hoje a noite promete, e já tarda. A ela.

(sábado, 8 de dezembro, por volta das 22h)

segunda-feira, dezembro 3

Sound art (arte com som), como seu padrinho, a música experimental, está de fato entre categorias, talvez porque seu efeito no ouvinte esteja entre categorias. Não é emocional nem é necessariamente intelectual. A música ou estimula, reforça, ou toca experiências emocionais, direta (por meio das letras) ou indiretamente (pela melodia e harmonia). Mesmo a música eletrônica e experimental, que é muitas vezes pensada como não-emocional ou intelectualizada, ainda lida com o processo de pensamento, tecnologia e comportamento humanos. O amor de Cage à natureza e a todos os sons ainda os enquadra (ordena) como um recurso natural a ser aproveitado por um compositor, ou como um transbordamento aural humanista da civilização. A música fala a um ouvinte como um ser humano, com toda a complexidade que isso implica, mas a sound art, a menos que empregue o discurso, fala a um ouvinte como a um habitante vivo do planeta, reagindo ao som e ao ambiente como qualquer animal faria (com toda a complexidade que isso implica). Isto soa desumanizante, mas este apelo a um denominador comum primal pode, de fato, mostrar o gesto humano em seu aspecto mais benevolente e menos engrandecedor. Ao tomar o som não como uma distração ou como moeda corrente, mas como algo elemental, [a sound art] pode, potencialmente, apontar ao tipo de consciência cósmica ao qual a arte tanto aspira.



Sound art, like its godfather experimental music, is indeed between categories, perhaps because its effect on the listener is between categories. It’s not emotional nor is it necessarily intellectual. Music either stimulates, reinforces, or touches on emotional experiences either directly (throught lyrics) or indirectly (through melody and harmony). Even electronic and experimental music, which is often thought of as unemotional or intellectualized, still deals with human thought process, technology, and behavior. Cage’s love of nature and all sounds still frames them either as a natural resource to be harnessed by a composer, or as humanist aural spillover from civilization. Music speaks to a listener as a human being, with all of the complexity that entails, but sound art, uness it’s employing speech, speaks to the listener as a living denizen of the planet, reacting to sound and enviroment as any animal would (with all the complexity that entails). This sounds dehumanizing, but this appeal to a primal common denominator may, in fact, show human gesture at its most benevolent and least aggrandizing. By taking sound not as a distraction or currency but as something elemental, it can potentially point to the kind of cosmic consciousness that so much art aspires to.

Alan Licht, Sound Art: Beyond Music, Between Categories. New York, Rizzoli, 2007. Tradução por Saulo Alencastre.

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quinta-feira, novembro 15

Mais um dia na metrópole do terceiro mundo, evito o primeiro tempo do trabalho para fazer um teste para outro. Uma hora tenho que conseguir escapar daquele buraco infeliz no cortiço da casa esquartejada, meio quarto separado por uma parede de madeira fina. Agora o novo velho vizinho que entrou ronca a noite toda com a tevê ligada. Eu mereço. O paranóico da frente continua ouvindo alto a rádio mal-sintonizada, e o arrependido seu Luis Carlos sofre das traquéias e do fígado e da falta de sono. E o trabalho não é tão mal, mas devora o dia inteiro, e paga aquela miséria parca só pra sobreviver. Samba e carnaval, quer enganar quem? Pior que não dá pra ajeitar um teto decente agora, e se for aprovado em outro trampo, vai ser uma viagem por dia, como vão ficar os frilas, mas sem moradia (e sem computador) não dá pra frilar. Não tem jeito, paciência, as coisas estão andando, tudo tem uma razão, deve ser provação. Isso sem falar na arte, que a essa altura do campeonato está acabrunhada em algum canto escuro esperando por um patrono mais generoso que a pátria amada.

Parece que foi razoavelmente bem no teste, vai saber. É esperar, e trabalhar. Ampliar as possibilidades aos poucos. Está tudo indo bem. Hoje às 18h saio do trabalho e vejo uma outra caverna, talvez possa trocar. Depois do almoço, fui para o trabalho em si. A livre iniciativa ambulante percorrendo as brechas dos grilhões da sociedade. Aniversário daquela gostosinha da mesa do lado, bolo depois das 18h, chego para ver a tal caverna na seqüência: acabei de alugar, diz a dona. Se tivesse chegado dez minutos antes, trocava de quarto. A menina ainda está aí. Mas entre para ver (o que você perdeu, mamão): descendo pela escada de madeira e adentrando até o fim do corredor, um singelo cômodo com paredes de verdade, longe da rua, em silêncio beatífico. E essas duas sapatas mirins revoltadas com a família abraçaram. É o império do loserismo, fantasma onipresente na imensidão cronológica da minha vida.

Mas a missão continua: metrô debaixo do trânsito caótico, o mano espera com o livro que havia pego na livraria especialmente para concluir o texto pra tal conferência internacional. Étrangers à nous-mêmes, traduzido para o inglês como Strangers to Ourselves. Difícil, e ainda dizem que trabalho braçal que é pesado. Mas como
braçal paga mais mal ainda, deixa pra lá. Capa dura preta, só o isbn grafado em vermelho brilhante na contracapa. Conversas satânicas pela superfície, pela avenida, em meio aos vermes do concreto e das latas motorizadas, chegando até a destruição da civilização. A natureza do homem é a sua cultura: torpe engano, idólatra. Preso nos labirintos da sua criação, cegou-se para si próprio.

Pego o metrô de volta para seu buraco de rato, o vizinho louco sentado no sofá pergunta se estou namorando a lavadeira que ele pegava, uma ex-prostituta que agora só mendingo vai querer comer. Cara, só vi ela uma vez, quando me passou os preços, e eu desencanei. Diz-se aposentado, conta a história do hotel que morou antes, de como bateu em um moleque que depois ameaçou-o armado. O bronquítico confeiteiro cearense obeso senta-se um pouco também. Chega da rua o velho da outra metade do caverna, falando animado de futebol e cumprimentando. Depois do banho, tento se concentrar, mas o zumbido agudo da televisão é realmente desesperador. Roncos. Levanto e bato à porta do camarada, que acorda de supetão, e desliga a maldita caixa da idiotia.

quinta-feira, outubro 11

Acampado em um buraco subterrâneo na selva de aço, asfalto e concreto, guiado por anjos procuro o demônio que há tempos me fugiu. Desconheço os habitantes das cavernas adjacentes, mas o rádio mal sintonizado toma conta de todo o ambiente. Um avião passa, automóveis, pássaros, portas e portões rangendo, um cão estridente, vizinhos discutem além da janela, o sino da igreja no pé da ladeira, uma campainha, torneiras, passos. Diria que a loucura se vai com a noite e a verdade se mostra gradualmente, como uma ressaca se dissipa e a mente se clareia, mas isso seria individualismo excessivo de minha parte.

O diabo foge do cativeiro: mas quando afinal escravizá-lo serei a eternidade e a existência, senhor de mim e do mundo, reconstruindo o Paraíso a cada movimento, cada respiração, simplesmente assumindo meu posto, alheio ao espaço, por toda a parte, abandonando o pensamento, sendo a unidade total. Sentido, ação, destino, ilusão: obstáculos no caminho originado pela queda e enraizados pelo condicionamento. A cultura é o Leviatã, besta ancestral devoradora de almas; mantém agrilhoada a humanidade que a criou.

Livro-me assim de minha criação, entregando-a aos irmãos, aguardando o retorno. Fortaleço-me na solidão impossível: a própria idéia de separação pertence à ignorância ou engano: juntos todos sempre, e tudo.

Aves vespertinas pontuam a modorra, que pesa nos olhos, desde o cérebro. Ao fundo a televisão vence o samba. Uma faixa de luz solar marca-se entre linhas paralelas na parede cheia de bolhas de madeira compensada. Mosquitos entram saem. Pés, dedos, lábios, o ar, a matéria, nomes, delírios. A linha de luz se apaga. É o tempo.

O tempo, outra apreensão dos sentidos limitados. Assim como vemos e ouvimos apenas um pequeno espectro de freqüências de ondas, percebemos somente um fragmento (de algo indefinível) a que chamamos tempo. Tudo é simultâneo? O Sol e Nagasaki explodem agora, caem Gomorra, Constantinola e a noite; formam-se o furacão, a grande mancha vermelha de Júpiter, o buraco negro e o redemoinho na pia, big bang e big crunch, tzintzun, morre a cobra, acaba a pasta de dente, 14h25’51”, 07/10/07.

Daqui ao fim minutos abarcarão milênios e a profecia realizar-se-á, ininteligível às sensações humanas, por definição. Entrego-me a Morfeu por um instante, se ele me abraçar. Não o faz, a família chama em seu lugar.

Do teto pende a lâmpada apagada, nua, pelo fio descascado; a rachadura olha no meio da parede da porta com as toalhas amarelas penduradas, a almofada esburacada solta espuma, a folha de revista cobre o vidro quebrado.

Levanto-me e volto à batalha, desprezando os túneis da física e da psicologia. Como antes, su agora, mas diferente: paradoxo perfeito da mutação constante e estática. Reinicio.